Há dias que acordo com uma sensação estranha dentro de mim, como se algo estivesse a pedir-me para sair. Não sei como dar um nome a isto… é uma pressão profunda, um nó, talvez antigo, uma memória que nunca morreu.
Fico aqui quieto na cama a ouvir o meu próprio peito. O bater do coração. Por vezes é quase como se ele estivesse a contar-me uma história.
E depois, ao longe, começo a ouvir uma música tocada ao piano que me parte ao meio. Totalmente.
Há sons que não são sons, são lâminas. E eu sou especialmente sensível ao som do piano, porque tem muito este efeito em mim. Cada lâmina entra devagar, rasgam-me devagar, e obrigam-me a olhar para tudo aquilo que evito no dia-a-dia. Sinto cada vibração atravessar-me a espinha e o peito, como se cada nota fosse um punhal.
É estranho como uma melodia consegue fazer-me lembrar tudo o que tentei enterrar. Nem falo das perdas concretas, mas daquelas partes de mim que aprenderam a sobreviver caladas, como se sentir fosse uma fraqueza.
E hoje acordei assim, e não consigo sair da cama. Hoje sinto-me aberto demais, exposto demais, mas também mais vivo do que nos últimos meses. Cada nota daquele piano ao fundo parece vibrar uma corda do violoncelo que tenho dentro de mim. É forte demais. É violento demais. Mas ao mesmo tempo é incrivelmente uma sensação de estar vivo, de sentir-me inteiro.
Se há uma coisa que aprendi nos últimos meses é que ninguém renasce sem morrer primeiro. E eu tenho morrido em vários pedaços, de formas que nunca ninguém viu. Sim, já morri várias vezes e sempre com um sorriso no rosto. Morri cada vez que sentia demais e o corpo não aguentava, morri quando tive de guardar tudo para mim e morri engasgado nas minhas próprias palavras e morri tantas e tantas vezes quando o meu corpo pedia silêncio e eu só lhe dava ruído.
Mas continuo aqui. Ainda que às vezes a noite pareça maior do que eu. Ainda que eu caminhe às cegas. Ainda que o mundo não faça sentido. E hoje sinto que preciso de escrever para quem vive com esta intensidade que nos consome totalmente. Para quem morre por dentro a sorrir por fora. Para quem tenta controlar as tempestades internas como se fosse possível domar um animal selvagem que vive dentro de nós.
Mas o que me pesa no peito não é a dor. É o silêncio. É tudo aquilo que eu não disse. É todas as vezes que aguentei só mais um bocadinho para não incomodar, para não ferir ninguém. Cada momento em que baixei a cabeça e deixei que as emoções ficassem presas dentro de mim. O silêncio tornou-se quase sólido, um corpo invisível que me acompanha, me aperta e me molda.
Mas não dá mais. Não quero continuar a esconder verdades só para não ferir egos inflamados. Eu agora apenas quero a verdade, apenas quero viver na verdade e com verdade para mim. É tão simples, mas tão complicado, porque às vezes a mente prega-nos algumas partidas… mas estou a renascer. Dói, arde, tira-me do chão, mas é real. É uma dor inexplicável, com cheiro a ferrugem e sabor a água oxigenada, e uma cor ligeiramente violeta.
Renascer não é bonito. É violento, é cru, é feroz. Mas é verdadeiro. E, apesar de tudo, é o lugar onde finalmente me reconheço.
Hoje precisei de escrever isto, porque se não o fizesse, iria rebentar por dentro. O meu peito não agüenta aquelas notas do piano que me cortam por dentro. E porque escrever o que dói liberta, salva. Porque há um momento que já não dá para esconder. Ou rompemos por dentro ou rompemos por fora.
Hoje escrevo porque há uma força dentro de mim que se contorce com cada nota daquele piano.
Escrevo porque não quero voltar a morrer por dentro.
Escrevo porque a vida já não me deixa escolher o silêncio.
E porque, para continuar a respirar, tive de me rasgar todo.
Então rasgo-me.
Mas vivo.
E, pela primeira vez em muito tempo, sinto-me inteiro.
E tu, que leste isto até ao fim, e que sentiste alguma destas lâminas atravessarem o teu próprio peito… respira. Sabe que não estás sozinho. Que sentir assim não é fraqueza. Que sobreviver a esta intensidade também é renascer. E que, apesar de tudo, ainda podes viver inteiro.






