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Para sempre, a tua querida vítima

Cresci com medo.
(suspiro)

Ele podia estar calmo, sorridente até,
e num instante tudo se transformava num inferno.
Os olhos negros como breu.
A raiva pura a escorrer pelos poros da pele dele.
Era como se conseguisse matar-me à distância.
O sol desaparecia, a vida desaparecia.
Só permanecia aquele diabo à minha frente.
E eu, pequeno, agarrado ao medo,
respirando apenas em pausas curtas, quase sufocado.

À mesa, os pratos voavam contra a parede,
estilhaços rasgando o chão e cortando o ar.
Tudo sujo. E eu só podia calar-me.
Nem uma lágrima podia cair pelo rosto.
Até o chão parecia mais seguro que as mãos dele.

Aprendi cedo a controlar o que podia.
A agradar. A fingir. A sobreviver.
Treze anos de sobrevivência contínua.
Como se estivesse numa selva,
fugindo de um inimigo,
mas o inimigo vivia ao meu lado,
respirava no quarto ao lado,
e eu ouvia-o a dormir.
Era como saber que a morte dormia comigo no mesmo quarto.
(suspiro)

Às vezes ajudava com as drogas dele,
dobrava ou triplicava a dose
para evitar explosões,
para tentar conter o inferno.
Era um segredo meu e da minha mãe.
Silêncio. Sempre silêncio.
Um piscar de olhos bastava e já nos compreendíamos.
Era a nossa única defesa.

Quantas noites precisei dela.
Mas ele não a deixava aproximar-se.
Se eu chamasse, ele aparecia com aqueles olhos negros,
apagava a luz, fechava a porta.
Eu tremia no escuro,
com medo do escuro, com medo dele,
com medo até do meu próprio corpo.

O sangue escorreu-me várias vezes pelo rosto,
o lábio cortado pelo anel de ouro dele,
por mentiras de uma prima sobre coisas que nunca tinha feito.
Mas, de alguma forma, agradeço-lhe,
todo o sangue derramado à frente da janela,
sem poder respirar, quase roxo,
sem chorar, sem libertar a dor.
Porque chorar podia custar-me ainda mais.

Enquanto isso, havia pessoas que ouviam, que imaginavam,
mas que nunca fizeram nada.
Nunca.
Como se consegue perdoar quem assistiu à destruição de duas crianças
e de uma filha,
e que nada fez?

Mas sabem…
Toda a gente dizia que ele fora de casa era tão boa pessoa.
Que custava acreditar que aquele monstro existisse.

Pois é…
Quem vê caras não vê corações.

A melhor notícia que alguma vez recebi na vida, foi quando soube que ia haver um divórcio.
Ainda hoje lembro-me exactamente das palavras,
do cheiro sufocante no ar, da tensão que quase podia cortar com as mãos.
O diabo finalmente saia de casa.

Leia também:  [Poema] O silêncio que mata a vítima de violência doméstica

Cresci assim.
Cresci com medo, com raiva, com dor.
A fugir, a ser perseguido, a olhar para todos os lados.
Aprendi a sobreviver. A lutar.
Mas nunca deixei de ser vítima.
Nunca deixarei, mesmo que só no papel.

Mas o que mais dói
é que, quando contas hoje a alguém,
principalmente a quem devia compreender-te, proteger-te e amar-te,
ainda diz que talvez não tenha sido assim tão mau.

Como se espancar um filho até o sangue correr pelo rosto fosse normal.
Como se matar a infância de uma criança,
marcando-a para sempre, fosse algo natural.

Aquele menino que cresceu entre gritos e medos
ainda chora por dentro sozinho.
Ainda luta sozinho.
Ainda sofre sozinho.

Tudo o que antes estava enterrado, esquecido,
como se se tivesse dissolvido nas sombras do passado,
agora regressa de repente em flashes inesperados,
como socos violentos no peito
que me arrancam o ar e me deixam quase roxo.

Mas hoje começo a purgar-me.
A purgar as minhas dores,
aquelas que estavam guardadas em gavetas especiais na minha mente há tantos anos.
Dói tanto que a dor me faz desaparecer por segundos,
Mas sobrevivi. Sempre sobrevivi.
Luto todos os dias.

A violência doméstica marcou-me para sempre.
Mas recuso-me a ser vítima.
Porque uma vítima pode ser marcada,
pode sangrar por dentro e por fora,
mas não precisa de morrer no e com medo para o resto da vida.

E serei, para sempre,
a tua “querida” vítima…
mas também serei sobrevivente,
aquela que quebra com as correntes do passado.
Aquela que aprendeu a respirar com o coração desfeito,
com o peito esmagado e estilhaçado.
Aquela que está a transformar a dor em força,
com as lágrimas que vão curando com o silêncio.

E por isso, mesmo marcado,
mesmo sangrando com as memórias,
não há mais correntes que me prendam.
Não há sombras que me apaguem.
Não há mais gritos que se calam dentro de mim.

Porque, no fim,
ser vítima foi apenas uma parte da minha história…
triste, talvez,
dura, certamente,
marcante, com certeza,
mas não foi o capítulo final.

E assim, marcado mas vivo,
que me transformei em alguém que tu nunca vais conhecer.
Porque para mim morreste há muitos anos.
Meu “querido” progenitor.
(suspiro final)

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Se estás a ler isto, talvez também tenhas passado por algo parecido. Talvez ainda sintas o peso de tudo o que carregas às costas, a raiva, o medo, a dor que parece não ter fim. Sei como é sentir que ninguém te pode salvar, que estás sozinho no escuro. Mas existe uma saída, mesmo que pareça distante. Começa por fazer terapia. A terapia não apaga as memórias, não limpa o sangue, nem finge que nada aconteceu, mas ajuda-te a encarar cada memória sombria, cada grito silencioso, cada cicatriz que te marca profundamente. Cada pequeno passo, cada lágrima que deixas cair, cada vez que te permites respirar fundo, é uma vitória. Sobrevive quem enfrenta o próprio inferno, quem decide que merece curar-se, que merece sentir-se inteiro outra vez. Tu mereces isso. Mereces ser feliz e livre. Confia em ti. Liberta-te. Sê feliz.

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rickyunic
rickyunic

Um projecto com mais de 20 anos, onde apresento e abordo assuntos que me interessam a cada momento da vida. Desde humor, a saúde, passando pela tecnologia, a sexualidade e a espiritualidade. Tudo é válido neste espaço. Conto consigo para passar um bom momento a dois.
Peace and Love.
Carpe diem.
Namastê.

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